Linha do Tempo Darcy Penteado

1940 - 1980

Introdução

A arte multifacetada de Darcy Penteado

Manifestações artísticas, com propostas modernistas, agitaram o Teatro Municipal de São Paulo no ano de 1922. Com um projeto estético diferenciado, a Semana de Arte Moderna, através das artes plásticas, literatura, música, teatro, entre outras formas de arte, enternecia boa parte dos olhares conservadores do período.

É nesse panorama, cuja diversidade de manifestações culturais se tornou marca brasileira dos anos de 1920, que nasce Darcy Penteado, na cidade de São Roque, interior de São Paulo, no dia 30 de abril de 1926. Momento propício para chegar ao mundo um dos nossos maiores representantes das artes plásticas, do desenho, da cenografia e dos figurinos.

Casarão de São Roque, 1952. Desenho em bico de pena nanquim sobre papel. Acervo Darcy Penteado - Fundação Enrico D´acqua , São Roque - SP

Na pré-adolescência, Darcy muda-se para a capital paulista, aproximando-se mais do universo artístico que o cotidiano do centro urbano proporcionava. Em entrevista ao jornal O Pasquim [1], o artista revela que essa “mudança de ares” ocorreu aos 10 anos de idade para dar continuidade aos seus estudos, já que à época não havia o curso ginasial na cidade de São Roque.

Em São Paulo, conclui o curso secundário e frequenta uma escola de desenho técnico, sendo contratado aos 17 anos como desenhista de peças de fogão em uma fábrica.

À esquerda: foto de Darcy e os irmãos, teatro de bonecos, sem data. À direita: reprodução de matéria de O Estado de S.Paulo, Teatro de Bonecos, 1948. Acervo Darcy Penteado - Fundação Enrico D´acqua , São Roque - SP

Suas práticas artísticas ecléticas lhe possibilitaram expressar-se de diversas formas. Durante os anos de 1940, é constantemente solicitado para ilustrar obras de poetas e contistas brasileiros e fazer croquis de moda para lojas e confecções. Inicia carreira como cenógrafo e figurinista de teatro e realiza espetáculos infantis com seu teatro de bonecos no Museu de Arte Moderna em São Paulo. Além disso, é contratado como arte-finalista em uma agência de publicidade [2].

Durante os anos de 1950, ilustra livros de Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Hilda Hilst, Graciliano Ramos, Reynaldo Bairão, José Escobar Faria, entre outros, bem como as edições do Clube de Poesia de São Paulo. Nessa década, amplia seu leque de trabalhos como desenhista: caricaturas para jornais, revistas, livros infantis, croquis de cenografia e figurinos; além de atividades de escrita como crítico de moda para a revista Jóia.

À esquerda: ilustração do livro Baladas, de Hilda Hilst, 2003, editora Globo. À direita: ilustração do livro O país do carnaval, de Jorge Amado, 1979, editora Record.

Suas exposições individuais se tornam muito frequentes nos anos de 1960. Embora a tentativa de participar das primeiras Bienais de Arte de São Paulo não tenha sido promissora, durante a IV Bienal Darcy pôde mostrar sua arte neste evento de alcance internacional.

Entre idas e vindas da Europa e da América do Sul, muitas exposições de suas obras puderam ser apreciadas dentro e fora do Brasil. Diversas galerias espalhadas pelo mundo receberam o legado artístico de Darcy Penteado nos anos de 1970. No intervalo entre as exposições, contribuiu com seus talentos na organização dos desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro: Unidos de Vila Isabel, Mocidade Independente de Padre Miguel e Imperatriz Leopoldinense.

Nos anos de 1980, Darcy Penteado participa de vários movimentos sociais em defesa de causas ambientais e dos direitos humanos e em protesto à violência contra homossexuais e prostitutas. Editor e articulista do jornal Lampião da Esquina (que circulou entre 1978 e 1981), do qual foi um dos fundadores, intencionava também dessa forma ser porta-voz das minorias marginalizadas pela sociedade tradicionalista.

Reprodução de O charme da bicha brasileira, 1971. Tinta a óleo sobre plástico. Acervo Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP). Exposição Maloca Centro Cultural, Sorocaba (SP), 2021.

[1] DARCY PENTEADO escancara [entrevista] (O Pasquim, ano XVII, n. 852, p. 11, 7 nov.-13 nov. 1985).

[2] Darcy Penteado: Curriculum levemente humanizado (PREFEITURA de São Roque [acervo], data provável: início dos anos 1980.

1940

Com seus desenhos, Darcy Penteado desponta e passa a ser concorrido

Quando Darcy Penteado iniciou sua carreira profissional, muitos eventos artísticos chamavam a atenção na cidade paulistana. Nas artes plásticas, foram inaugurados o Museu de Arte de São Paulo (Masp) em 1947 e o Museu de Arte Moderna (MAM) em 1949; já havia também um movimento de organização da primeira exposição da Bienal de São Paulo, que ocorreria somente em 1951. Nas artes cênicas, foi fundada a Escola de Arte Dramática (EAD) e criado o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), ambos em 1948. Em São Bernardo do Campo, cidade vizinha à capital, se instalava a Companhia Cinematográfica Vera Cruz em 1949, conhecida por muitos como a Hollywood paulista[1].

Foto de Darcy com escultura em arame, sem data. Acervo Darcy Penteado - Fundação Enrico D´acqua , São Roque - SP

Esses anos foram muito significativos para as artes e para a cultura paulista de forma geral. Darcy, que havia começado a trabalhar como desenhista de peças de fogão em 1943, respirava esse clima de crescimento e empoderamento das artes em São Paulo. Em entrevista ao jornal O Pasquim[2], o artista conta que a disciplina exigida nesse emprego como desenhista mecânico foi muito importante para sua formação, mas que ele gostava mesmo era de desenhar figuras; então, inicia a busca por trabalhos na área de moda, desenhando trajes femininos.

Seus desenhos criativos e originais o levam a abrir novas frentes de trabalho: em agências de publicidade, revistas de moda e ilustração de livros infantis. A harmonia de seus traçados se revela no uso da técnica de bico de pena, que permite traços com efeitos finos-grossos, tornando seus desenhos únicos, com diferenciais atrativos e cativantes pela beleza e elegância dos contornos.

Nu feminino, 1949. Desenho em nanquim sobre papel. Acervo Darcy Penteado - Fundação Enrico D´acqua , São Roque - SP

Aos 18 anos é contratado pela agência de publicidade Panam, depois pela Mc Cann Erickson e por último pela Standard Propaganda como arte-finalista. Em 1946, aos 20 anos, faz caricaturas para a revista Bom Humor.

Tenta ingressar no teatro amador, no grupo de Décio de Almeida Prado, com a participação de Cacilda Becker, recém-chegada do rádio. Logo percebe que não leva jeito como ator, porém, se encanta pela técnica cenográfica e pela elaboração de figurinos.

Comentários de Paschoal Carlos Magno sobre o teatro de bonecos, no jornal carioca Correio da Manhã, de 29 de maio de 1948, cita o nome de Darcy Penteado. Esse é um marco do aparecimento de seu nome na imprensa nacional.

Seu interesse pelo teatro já existia desde a mais tenra infância. Ainda pequeno, ao lado dos irmãos e da prima, Darcy havia criado um teatro de marionetes, retomando essa ideia em 1949, junto com os artistas Duja Gross, Nieta Lex e Reynaldo Bairão, com uma proposta mais elaborada desse gênero teatral. Chegam a realizar alguns espetáculos no MAM em São Paulo, mas o projeto infelizmente não segue em frente.

Foto no jornal Folha da Noite em matéria sobre apresentação do Grupo Teatro de Bonecos no TBC, dez. 1948. Acervo Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).

Foram as ilustrações de poemas da Semana do Novíssimo, em evento realizado no Clube dos Artistas de São Paulo, que propiciaram ao artista sua primeira participação em exposições.

Durante o ano de 1948, entre os dias 29 de abril e 2 de maio, vários espaços culturais da cidade de São Paulo abriram as portas para receber os “novos” poetas, que, segundo o idealizador do evento – Domingos Carvalho da Silva –, seria o I Congresso Paulista de Poesia.

Ilustração para o livro de poemas Praia oculta, de Domingos de Carvalho da Silva, 1949. Acervo Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).

Aos “novos” poetas inspiradores da conferência acabam associando-se, a partir do congresso, os “novíssimos”, divulgados desde 1948 pelo Clube de Poesia de São Paulo, entre os quais estão Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Zulmira Tavares e Mario Chamie, poetas cujo trabalho posterior acabaria por assumir orientação significativamente independente [...] [3].

Espaços como os auditórios da Biblioteca Municipal de São Paulo, do jornal A Gazeta e da Escola Normal Caetano de Campos, bem como o MAM e o foyer do Teatro Municipal abriram suas portas aos poetas durante o congresso.

Os retratos desenhados por Darcy Penteado também começam a circular pela cidade de São Paulo, vindo a público mais um de seus talentos: agora como retratista. Em 1948, pode-se apreciar o retrato de Di Cavalcanti, no Diário de São Paulo. Em 1949, a revista Artes Plásticas publica o retrato de Jovina Duarte, mãe do sociólogo Paulo Duarte.

Retrato de Emiliano Di Cavalcanti, 1948. Desenho em nanquim. Reserva técnica do Masp (SP).

Ainda em 1949, o artista se torna ilustrador do suplemento literário do Jornal de Notícias, de São Paulo, sendo muito procurado por contistas e poetas brasileiros para ilustrar seus livros, sejam capas ou ilustrações internas.

Para fechar com chave de ouro a década de 1940, Darcy Penteado faz sua primeira exposição individual na comemoração de um ano da Semana do Novíssimo, no Instituto dos Arquitetos de São Paulo. O público pôde conhecer então não somente seus desenhos, mas também suas esculturas feitas com arame. .

Catálogo do evento comemorativo da Semana do Novíssimo, 1949. Acervo Darcy Penteado - Fundação Enrico D´acqua , São Roque - SP

[1] MATTOS, David José Lessa (O espetáculo da cultura paulista: teatro e televisão em São Paulo [décadas de 1940 e 1950], 2002, p. 21).

[2] DDARCY PENTEADO escancara [entrevista] (O Pasquim, ano XVII, n. 852, p. 11, 7 nov.-13 nov. 1985).

[3] DA COSTA, Edson José (A Geração de 45. Letras, nº 49, p. 54, 1998).

1950

A efervescência artística e o vanguardismo de Darcy Penteado

Rosto desenhado com duas mãos ao mesmo tempo, 1952. Nanquim sobre papel. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).

Nos anos de 1950, o Modernismo esteve presente em diversas formas de representação estética na cidade de São Paulo, bem como em outras regiões do território nacional. Nas paisagens urbanas, os novos projetos arquitetônicos são pensados a partir da utilização de elementos geométricos. Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, responsáveis pelo plano piloto e projeto arquitetônico daquela que viria a ser a capital do país, tornam-se referência da arte urbanística futurista com a construção de Brasília, ocorrida entre 1957 e 1960.

Caminhando paralelamente a essas novidades arquitetônicas naqueles anos de 1950, o surgimento da televisão – marco importante da comunicação e da cultura nacional –, o novo ritmo musical do rock and roll e o concretismo estético, entre outras manifestações artísticas, possibilitaram a ascensão de expressões culturais nas mais diferentes áreas.

Na música, o movimento da Bossa Nova, que alcançou destaque mundial com sua forma diferenciada de tocar e cantar o ritmo do samba, é um exemplo dessas inovações.

Nas artes plásticas, o movimento concretista reuniu experimentações e pesquisas iniciadas nos anos 1940 e inaugurou uma nova fase de produção artística. Inovações, explorações e descobertas abriram as portas para a arte contemporânea. Essa vanguarda pôde ser vista na I Bienal de São Paulo, realizada entre outubro e dezembro de 1951.

Ficha de Inscrição Bienal, 1951. Biblioteca e arquivo histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal de São Paulo.

Inovações, explorações e descobertas abriram as portas para a nova arte contemporânea.

A vanguarda do concretismo, iniciada pela música e incorporada pelas artes plásticas, puderam ser vistas na I Bienal de São Paulo, realizada entre outubro e dezembro de 1951.

O cenário artístico já vinha sendo impulsionado desde o final da década de 1940 com a inauguração do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e dos Museus de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de São Paulo. Esses espaços abrigavam a arte moderna, acolhendo artistas e exposições imprescindíveis para o envolvimento do público nacional e internacional com a arte brasileira.

Um dos principais eventos internacionais das artes plásticas no Brasil até hoje, a Bienal de São Paulo teve sua primeira edição, em 1951, amplamente noticiada. No concurso realizado para a escolha do cartaz de divulgação, Darcy Penteado obteve a segunda colocação, resultado bastante significativo para sua carreira e visibilidade como artista plástico.

Cartaz premiado em 2º lugar na 1ª Bienal de São Paulo, 1951. Biblioteca e arquivo histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal de São Paulo.

No final do ano de 1952, Darcy participa do 2º Salão Paulista de Arte Moderna, no setor de desenho. Esse evento, realizado pela primeira vez em 1948, teve papel importante na promoção da arte brasileira, oferecendo um espaço singular para exposição de artistas emergentes. Os “Salões de Arte Moderna” que pipocavam em várias cidades brasileiras permitiam a apresentação de obras em diferentes formatos: fotografia, desenho, pintura, instalações multimídia, entre outras.

No Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), em março de 1954, o artista inaugura uma exposição de desenhos com a presença de pessoas ilustres da sociedade. Utilizando-se da técnica “mata-borrão”, esses desenhos envolviam papéis, tecidos ou esponjas para atenuar ou fundir as texturas ou linhas.

Gato, 1956. Desenho em mata-borrão. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).

Neste mesmo ano, o artista participa do 3º Salão Nacional de Arte Moderna no Rio de Janeiro; no ano seguinte, 1955, compõe a mostra da III Bienal de São Paulo; e, em 1956, faz nova exposição individual no MAM-SP.

Meninas, 1953. Desenho em nanquim sobre papel. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).

Artes Cênicas

Esse viés artístico de Darcy Penteado aparece já em sua meninice, com o teatro de bonecos que ele criara junto com os irmãos e uma prima e promovia singelas apresentações em sua cidade natal. Ao longo da carreira, esse talento se expandiu para figurinos e cenários de diversas produções teatrais, com os quais obteve seus primeiros reconhecimentos públicos.

Em 1952, uma nova fase de seu contato com as artes cênicas se inicia: estreia no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) com a confecção de máscaras para a versão grega da peça Antígone, de Sófocles, sob direção de Adolfo Celi, figura de destaque na profissionalização do teatro nacional à época. No mesmo ano, Darcy faz a cenografia e o figurino da peça A calça, de Carl Sternheim, direção de Evaristo Ribeiro, e, em 1954, da peça Iolanda, de Curt Goetz, dirigida pelo então iniciante Antunes Filho, ambas para o grupo teatral de Lotte Sievers [1].

Foto de Darcy no cenário da peça de teatro A calça, 1952. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).

Fundado na cidade de São Paulo pelo empresário Franco Zampari, em 1948, o TBC, sob influência das vanguardas teatrais europeias do período, trouxe diversas inovações para o universo teatral do país, modernizando-o em vários aspectos.

O ecletismo, marca da companhia, propiciava a criação e produção de peças com novas propostas estéticas e com dramaturgias impetuosas, rompendo com tendências mais convencionais.

Construíram a imagem do TBC muitos artistas que se tornaram famosos: Cacilda Becker, Paulo Autran, Tônia Carrero, Walmor Chagas, Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Cleyde Yáconis, entre outros.

As montagens [de teatro de bonecos] de Nieta Lex Leite eram basicamente para o público infantil, mas, no ano de 1953, arriscou fazer um espetáculo para adultos, juntamente com Maria Duja Gross, Nelly Ribeiro Leite, Darcy Penteado e Reynaldo Bairão. No TBC, apresentaram Pássaro de Fogo, de Stravinsky, O Irmão das Almas e O Maquinista, de Martins Pena, e Farsa Grotesca, de Aldous Huxley. Os bonecos foram de autoria de Darcy Penteado [2].

Darcy Penteado esteve envolvido com o TBC em diversos momentos. Em 1958, ele elabora os figurinos da peça Pedreira das almas, texto de Jorge Andrade, dirigida por Alberto D’Aversa, demonstrando mais uma vez sua criatividade e habilidade como designer teatral. Esse trabalho lhe rendeu o Prêmio Saci, em 1959, de melhor figurinista, oferecido pelo jornal O Estado de S. Paulo. Tal premiação ocorria anualmente aos maiores destaques da produção nacional de teatro e cinema.

Catálogo da peça de teatro Pedreira das almas, 1958. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).

À esquerda: fotos na revista O Cruzeiro, peça de teatro É proibido suicidar-se na primavera, com Nicete Bruno e Paulo Goulard, cenário de Darcy, 1954. À direita: Catálogo da peça, 1954. Acervo Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).

Durante os anos de 1950, Darcy teve a oportunidade de trabalhar com renomados diretores teatrais. Em 1953, desenvolve cenário e figurinos para a peça É proibido suicidar-se na primavera, de Alejandro Casona, direção de Ruy Affonso, encenado pela Companhia Nicette Bruno. Por este trabalho, o artista recebeu o Prêmio Governador do Estado de melhor cenografia.

No ano de 1954, Darcy Penteado desenha a cenografia e os trajes do balé Sonata da angústia, para o evento comemorativo do IV Centenário de São Paulo [3]. A coreografia ficou a cargo de Ismael Guiser, nome consolidado na história da dança brasileira, com música do compositor húngaro Béla Bartók. Para produzir a cenografia, Darcy teve que explorar sentimentos e emoções compatíveis à atmosfera dramática da dança.

Neste mesmo ano, inicia cenários e figurinos para a nascente televisão. Esses são apenas alguns exemplos da contribuição do artista nas artes cênicas.

Literatura: ilustrações e retratos

Concomitantemente ao trabalho desenvolvido no teatro, Darcy Penteado mantém-se bastante ativo em outras atividades artísticas.

Desde o final da década de 1940, dedicava-se ao desenho de retratos e às ilustrações para livros, jornais e revistas.

Nos anos de 1950, ilustra livros de Hilda Hilst, Domingos Carvalho da Silva, Reynaldo Bairão, entre outros, bem como as edições do Clube de Poesia de São Paulo.

Para compor seus textos visuais, utiliza-se da intertextualidade, diálogo entre diferentes linguagens, englobando elementos de diversas produções imagéticas.

Em 1950, Darcy Penteado participa da exposição coletiva organizada por Oswald de Andrade no foyer do Teatro Municipal de São Paulo. Esse tipo de exposição se tornou rotineira em várias localidades do país, pois era uma forma de dar visibilidade à nossa vanguarda literária.

Em 1952, Darcy realiza frequentes trabalhos de capista e ilustrador para a Livraria Martins Editora e, no ano seguinte, além de ilustrar livros infantis para a Edições Melhoramentos, de São Paulo, o faz também para o livro premiado do Concurso de Poesia Feminina do jornal A Gazeta (SP). Em 1957, publica o álbum Nosso teatro de bonecos pela Melhoramentos.

Capa do Livro Nosso Teatrinho de Bonecos, de Reynaldo Bairão e Darcy Penteado, 1957, Edições Melhoramentos. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).

O livro da poeta Lupe Cotrim, Raiz comum, de 1959, recebe um belo retrato da autora desenhado por Darcy, sendo dele também as ilustrações de Monólogos do afeto, livro de estreia de Lupe em 1956 [4].

A técnica utilizada por Darcy na composição dos retratos em branco e preto tornou-se uma de suas marcas registradas nesse gênero das artes visuais.

Retrato de Oswald de Andrade, 1957. Jornal Folha da Noite, 8 fev. 1957. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).

Darcy Penteado nos periódicos brasileiros

Os jornais e revistas brasileiros impressos tiveram papel muito importante na cultura letrada nacional, sendo fundamentais para a difusão de informações, ideias e debates. Os periódicos eram veículos vitais para o jornalismo, ciência, política, literatura, esportes, artes, entre outras áreas do conhecimento, principalmente em um período em que pouquíssimos lares brasileiros tinham acesso a um aparelho de televisão.

Darcy Penteado, ao assinar suas produções para os periódicos nacionais, garantia maior visibilidade pessoal e profissional na sociedade da época. Em 1951, ele inicia um trabalho no suplemento de arte do Jornal de Notícias, cuja seção “Sucesso teatral da semana” trazia seus desenhos e respectivos comentários sobre as artes cênicas.

No início de 1952, o artista começa a colaborar como ilustrador na Revista Branca, de literatura e arte, do Rio de Janeiro, e a ilustrar a revista Rio. No ano seguinte, ainda para a revista Rio, faz uma série de entrevistas desenhadas, cujo título era “O artista em seu habitat”.

Capa da revista Rio, 1952. Acervo Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).

A partir de 1956, Darcy torna-se ilustrador do Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. O suplemento fora idealizado para ser um espaço dedicado a resenha de livros, entrevistas com autores, artigos sobre literatura, crítica e demais temas do mundo literário, sendo uma importante plataforma de divulgação e debate sobre a literatura nacional e internacional.

No ano de 1958, ele começa a fazer comentários e críticas sobre a história da moda na revista Jóia, cujo público-alvo eram os segmentos de moda e joias, trazendo informações e novidades do mercado, tendências e estilos de moda e beleza.

A sétima arte

No ano de 1952, Darcy Penteado assumiu um belo trabalho para a Cia. Cinematográfica Vera Cruz, cuja responsabilidade era a de desenhar em quadrinhos o filme Tico-tico no fubá, dirigido por Adolfo Celi. Sendo uma comédia musical que homenageava o choro “Tico-tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu, esse longa-metragem tornou-se uma referência do cinema brasileiro.

Filme Tico-tico no fubá em quadrinhos, jornal Última hora, 14 abr. 1952. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).

Para não finalizar: o ecletismo

O envolvimento de Darcy Penteado com diversas artes durante a década de 1950 lhe propiciou desenvolver trabalhos ao lado de artistas e intelectuais consagrados da arte moderna e da vanguarda intelectual brasileira: Oswald de Andrade, Hilda Hilst, Lasar Segall, Mario Zanini, entre tantos outros nomes relevantes da cultura nacional. Isso oportunizou alavancar seu trabalho como artista plástico, figurinista, ilustrador, produtor audiovisual, desenhista e cenógrafo.

Influenciado pelas vanguardas europeias (expressionismo e cubismo), soube incorporar a realidade brasileira à sua produção. Seu ecletismo artístico permitiu a exploração de temas relacionados ao cotidiano, à rotina urbana, às questões sociais, retratando com sensibilidade as nuances da vida brasileira.

[1] Não conseguimos confirmar, em pesquisa, se estas peças foram encenadas no TBC.

[2] MENDONÇA, Tânia Gomes (Entre os fios da história..., 2020, p. 399).

[3] Embora o balé tenha sido organizado para estrear em São Paulo, isso ocorreu no Rio de Janeiro porque o Teatro Municipal de São Paulo estava em reforma.

[4] GOUVÊA, Leila V. B. (Lupe Cotrim: algumas lições do amigo..., 2009, p. 60 e 63).

1960

A Pop-Art de Darcy Penteado nos anos de arte e resistência

Foto de Darcy na Bienal de São Paulo, 1967. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).


Nos anos de 1960, enquanto o Brasil estava imerso em profundas transformações sociais e políticas, a cena cultural fervilhava com uma gama diversificada de movimentos artísticos que surgiam como reações audaciosas àquele contexto.

Período marcado por um cenário político sombrio, com um golpe militar em 1964 implementando uma longa ditadura, que perdurou até meados dos anos 1980. Essa reviravolta política teve repercussões profundas na vida cultural do país, com a censura e a repressão política lançando uma sombra sobre a liberdade de expressão e a criatividade artística.

Ao mesmo tempo que o Brasil se debatia com mudanças e desafios em sua identidade nacional, os artistas encontravam maneiras ousadas e provocadoras de expressar suas visões de mundo e resistir às limitações impostas pelo regime político autoritário. Nesse cenário complexo, diversos movimentos culturais emergiram e tomaram lugar permanente na história da arte brasileira, além de desempenharem um papel decisivo na resistência artística e política contra a opressão.

Na música, a Tropicália, movimento liderado pelos artistas Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, buscava retomar criativamente a tradição cultural do país, reinventando-a para os tempos contemporâneos, “devorando” influências estrangeiras e transformando-as em algo genuinamente nacional, através da combinação de elementos da música popular brasileira com influências do rock e da cultura pop, com abordagens experimentais e provocadoras. Ao questionar e subverter normas estéticas e culturais tradicionais, o movimento antecipou tendências que se tornariam características do pensamento pós-moderno, como a fragmentação, a pluralidade e o ecletismo.

No cinema, o denominado Cinema Novo despontou como um farol de inovação e engajamento político. Esse movimento, liderado pelos visionários cineastas Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, marcou uma virada significativa no cenário cinematográfico nacional, criando películas profundamente engajadas politicamente, capazes de abordar profundamente questões sociais e políticas brasileiras.

Glauber Rocha, por exemplo, conhecido por seu filme Deus e o diabo na terra do sol, narrou nesse longa-metragem a jornada de um homem oprimido que se torna um líder messiânico. Nelson Pereira dos Santos, por sua vez, dirigiu Vidas secas, obra homônima de Graciliano Ramos, que retrata a dura vida de uma família de trabalhadores rurais no sertão nordestino. Cacá Diegues, com Ganga Zumba, mergulhou nas raízes da cultura afro-brasileira e na história da escravidão no país, trazendo à tona questões de identidade e resistência. Esse movimento deixou um legado duradouro e inspirou gerações subsequentes de cineastas a explorar novas narrativas e a dar voz às preocupações da sociedade.

No que diz respeito ao teatro, este também estava passando por mudanças significativas com o aparecimento de grupos de vanguarda, como o Teatro Oficina, de Zé Celso Martinez Corrêa, que apresentava peças provocativas e politizadas com temas sociais.

Na literatura, assistimos a um momento muito produtivo e transformador. Marcada por um profundo engajamento político e social, a década de 1960 testemunhou o surgimento de vozes literárias que ecoavam os anseios de uma nação em busca de identidade e justiça. Autores como Clarice Lispector, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto continuaram a enriquecer o panorama literário, enquanto novas vozes trouxeram abordagens mais contemporâneas e introspectivas, a exemplo de Lygia Fagundes Telles.

Nas artes plásticas, São Paulo se destacava como um epicentro criativo, que desafiava os limites da expressão artística. A arte contemporânea apresentava, nas bienais de São Paulo, artistas nacionais e internacionais de relevo, como os brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark, entre outros que exploravam novas formas de arte, como a arte cinética e a arte participativa.

Nesse contexto, um nome se destacava e ecoava nas galerias, nos teatros e ateliês da cidade: Darcy Penteado. Seu trabalho marcado pela ousadia e exploração de novas técnicas fora marcante na cena artística daquele momento. Podiam ser apreciadas obras repletas de figuras humanas, paisagens urbanas e cenas do cotidiano, todos carregados de um espírito provocador e questionador.

Autorretrato Eu. 1964. Colagem. Acervo Masp. Foto: Alexandra Cavassana.


Mas seu trabalho não se limitava à estética vibrante, carregava também uma mensagem crítica e política. Em um momento em que o Brasil vivia sob uma ditadura militar, as obras de Darcy Penteado frequentemente faziam alusões sutis às questões sociais, à desigualdade e à repressão política. Seus retratos de figuras populares eram uma afirmação da identidade nacional e um grito contra a opressão.

Darcy se tornou uma das figuras centrais do movimento conhecido como Pop-Art brasileira, o qual buscava expressar as transformações sociais, culturais e políticas da época por meio da arte. Explorou diversas linguagens artísticas, incluindo pinturas e gravuras, em composições dinâmicas que revelavam muitas delas formas orgânicas e geométricas.

Fragmentos da obra A boneca, 1964. Assemblage. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).


Além de sua contribuição para as artes, se envolveu também em questões sociais e políticas, participando ativamente do movimento cultural e artístico brasileiro de então. Seu comprometimento com a experimentação e a inovação artística colaborou para enriquecer o cenário cultural das artes plásticas, das artes cênicas, da literatura e da imprensa nacional daqueles anos.

A cenografia que encantou palcos Brasil afora


Durante os anos de 1960, na Bienal de Teatro [1], Darcy Penteado apresentou duas maquetes que o colocaram como forte candidato ao prêmio do evento. Uma delas representando o cenário da peça O doente imaginário, de Molière, que, na linha estilista, trouxe uma solução inteligente para o desafio de um teatro móvel, no caso, o Pequeno Teatro Popular. O cenário utilizava apenas uma cor de fundo, permitindo que os figurinos coloridos dos atores se destacassem. Esse trabalho demonstrou a habilidade do artista de combinar as funções de cenógrafo e figurinista em uma única pessoa, ressaltando sua forma eclética de elaborar obras artísticas.

Darcy também assumiu a responsabilidade pela cenografia da peça Armadilha para um homem só, de Robert Thomas e direção de Luís de Lima, no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo. Ao chegar ao Rio de Janeiro em 1962, no Teatro Copacabana, o Correio da Manhã dedicou o início da página do jornal para chamar a atenção do público sobre essa obra e sua cenografia, destacando a incrível versatilidade do artista, tanto nas artes plásticas como no teatro [2].

Darcy Penteado não era apenas um grande artista plástico, mas também um mestre na arte de dar vida aos espaços teatrais com sua visão única e criativa. Sua habilidade em criar ambientes cênicos o fazia traduzir com primor o espírito da obra para o palco. Embora o teatro sempre estivesse presente em sua vida, no decorrer dos anos de 1960, entre idas e vindas da Europa, o artista passou a dedicar seu tempo mais assiduamente ao desenvolvimento das artes plásticas.

Explorando fronteiras artísticas: da vanguarda 'post-pop' à releitura da Via Crucis


No início dos anos 1960, Darcy Penteado vivenciou o auge de sua criatividade e reconhecimento artístico, deixando sua marca na cena cultural. Em um momento em que vicejava a efervescência artística da cidade de São Paulo, crescente a cada dia, o artista apresentou uma exposição individual na prestigiosa Galeria São Luís. Essa exposição revelou ao público uma série de desenhos intrigantes e cativantes, intitulada “Gaiolas”.

Dentro desse conjunto de obras, Darcy Penteado explorou dois temas principais: gaiolas e alçapões. Com uma habilidade ímpar na utilização de bisnagas, deu vida à sua visão artística em trabalhos tanto sobre papel como sobre tela. A exposição não apenas impressionou os espectadores pela técnica utilizada, mas também pela profundidade conceitual das criações do artista, que convidavam o público a refletir sobre questões de liberdade, confinamento e a complexa relação entre o ser humano e sua busca por autonomia.

Em 1961, a Casa do Artista Plástico de São Paulo celebrou uma memorável retrospectiva intitulada “14 anos de desenho”, que trouxe à luz a evolução contínua e a riqueza da obra de Darcy Penteado. No catálogo da exposição, o crítico de arte Sergio Milliet comenta: “Pouco teria que acrescentar agora, em 1961, porquanto as características do artista continuam as mesmas...”.[3] Essa observação destaca a consistência da identidade artística de Darcy Penteado ao longo dos anos. No entanto, Milliet ressalta que essa continuidade não deveria ser interpretada como estagnação, pois o artista demonstrava constante inovação em sua abordagem.

Darcy Penteado explorou novas técnicas e materiais ao longo de sua jornada criativa, experimentando com papel, mata-borrão, tecidos trabalhados, pincel e conta-gotas. Essas explorações não o afastaram do figurativismo, mas adicionaram novas dimensões à sua obra. Conforme nota Milliet, o artista passou a dar menos importância ao tema em si e concentrou-se cada vez mais na criação de ritmos e composições impactantes.

Bicicleta, 1961. Acrílica sobre compensado. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).


Darcy Penteado participou também, entre os anos de 1961 e 1962, de exposições na Galeria de Arte das Folhas [4], onde artistas como Tomie Ohtake, Aldemir Martins, Francisco Rebolo e outros tiveram suas obras exibidas ao longo dos anos.

Ainda em 1962, o jornal Estado de Minas [5] anunciava o lançamento do álbum Caderno de Ouro Preto, obra que contém os desenhos do artista cuidadosamente elaborados sobre a antiga Vila Rica. Cada traço desses desenhos une-se harmoniosamente com a poesia de Reynaldo Bairão, resultando em uma experiência artística profunda e envolvente. Esse caderno de arte teve tiragem limitada a 1 mil exemplares, todos confeccionados com um toque de refinamento ímpar. Dentre eles, trinta e cinco exemplares se destacaram como verdadeiras joias, pois abrigavam desenhos originais, ricos em detalhes.

CadernoVisão plástica de Portugal, 1967. Ilustração. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).


Ainda na primeira metade dos anos de 1960, Darcy Penteado fixou residência na Europa. Ao chegar à Itália, o artista reencontrou suas raízes figurativistas, mergulhando profundamente no universo da representação visual. No entanto, sua jornada artística tomou um novo rumo ao embarcar em experimentações com colagens que incorporavam objetos inusitados. A crítica de arte italiana, sempre atenta às novas tendências, classificou sua obra como “post-pop”, termo que reflete a fusão de elementos da Pop-Art com uma perspectiva contemporânea única.

Giulio Argan, então presidente da Associação Internacional de Críticos de Arte, demonstrou interesse particular pela obra de Darcy Penteado. Argan destacou a “nostálgica poesia dos objetos extintos” [6] como uma constante na obra do artista, apreciando a maneira como ele explorou a relação entre a cultura popular e a arte contemporânea, revelando um profundo entendimento das complexidades da sociedade moderna por meio de sua expressão artística singular. A classificação “post-pop” ressoou como uma marca de inovação e criatividade na cena artística italiana.

A mulher e a viola, 1965. Assemblage. Acervo Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).


Já em solo brasileiro, em maio de 1966, uma exposição no Museu de Arte de São Paulo (Masp) apresentou uma ousada e provocante série de quadros que retratavam a vida de Cristo de uma forma completamente diferente. Sem dúvida, a série Via Crucis, de Darcy Penteado, foi um verdadeiro marco em sua trajetória artística. Nessa interpretação contemporânea da Via Sacra, que narra a jornada de Jesus Cristo desde a condenação até a crucificação, o artista demonstrou sua habilidade em reinventar temas religiosos clássicos.

Sobre a obra, o próprio artista aponta: “Considero a Via Crucis um dos temas mais apaixonantes. O drama do Cristo é tão atual, a humanidade continua tão a mesma coisa que, tenho certeza, caso ele de novo aparecesse seria igualmente crucificado. Sabe-se lá se já não voltou algumas vezes e se em todas elas nós não o assassinamos? Quantos Cristos já terão sido sacrificados só pela nossa geração?” [7].

Darcy não se esquivou do profundo simbolismo e significado religioso que permeiam a Via Crucis, mas ousou expor uma visão pessoal e única. Seu estilo artístico distintivo é evidente em cada estação, desafia as convenções e incentiva os espectadores a ter um novo olhar para a história de Cristo. Com elementos visuais e conceituais provocativos, a obra faz um convite à reflexão acerca da jornada de Cristo e suas implicações espirituais e humanas no mundo contemporâneo.

De acordo com a revista Manchete, “Darcy Penteado propõe uma nova série de quadros da vida de Cristo, não mais configurada nas 14 estações tradicionais, mas em 10 telas baseadas nos depoimentos dos evangelistas. A eternidade do tema sacro, já interpretada por artistas em todas as épocas, passa agora pelo branco e preto do artista brasileiro, numa versão caótica que apresenta Cristo como um componente do mundo absurdo de hoje. No painel de Darcy Penteado, esse Cristo caminha, consciente e altivo para a crucificação” [8].

Acima, à esquerda: Cristo recebe a cruz, série Via Crucis, 1966. Colagem. Acervo Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP). Acima, à direita: Cristo recebe a cruz, série Via Crucis, 1966. Caneta hidrográfica sobre papel. Foto do Acervo Masp. Abaixo, no centro: foto de Darcy com sua obra em São Roque. Acervo Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


O "futilismo" de Darcy Penteado e seu o olhar artístico icônico


Nos agitados anos da década de 1960, um movimento artístico intrigante e controverso emergiu das mãos criativas de Darcy Penteado, deixando sua marca indelével na cena cultural brasileira. Esse movimento, apelidado de “futilismo”, rapidamente se tornou um tópico quente nos jornais do país, provocando debates acalorados e críticas apaixonadas.

Em 11 de março de 1969, o jornal O Globo fez uma manchete audaciosa anunciando a chegada dessa “nova onda” nas artes plásticas, lançando luz sobre as controvérsias que cercavam o artista e seu movimento. O futilismo foi descrito como uma apologia à futilidade, uma postura aparentemente cínica, mas profundamente irônica e perspicaz. Em um momento em que a sociedade clamava por compromissos e engajamento, o futilismo de Darcy Penteado parecia uma fuga, mas, nas palavras do próprio artista, era uma forma consciente de passividade diante dos desafios e condicionamentos mundanos.

Para muitos, o futilismo representava uma espécie de alienação, um conformismo com os valores da época. No entanto, sua aparente contradição era uma estratégia deliberada, destinada a provocar reflexão sobre seu tempo. Darcy via esse movimento icônico como uma declaração de atitude, um modo de confrontar a sociedade contemporânea de maneira sarcástica e mordaz, inspirado pelos cineastas Federico Fellini e Jacques Tati, que usavam o humor como ferramenta para críticas sociais profundas.

A pintura dentro do futilismo era uma celebração do humor, com tons de ironia, caricatura e uma falta intencional de pretensões grandiosas. Não se tratava de resolver os problemas do mundo, mas de lançar um olhar crítico sobre eles. Com raízes na Pop-Art, compartilhava com esse movimento a disposição para questionar o cotidiano, rejeitando a responsabilidade de fornecer soluções. Era uma abordagem que, de maneira estranha e intrigante, capturava a essência de uma época turbulenta que poderia ser transformada em arte.

Entre capas e ilustrações: Darcy Penteado mantém-se presente na literatura


Nos anos 1960, Darcy Penteado continua emprestando igualmente seu talento para a cena literária. Colaborava como ilustrador para o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo desde a segunda metade dos anos 1950.

Em 1961 [9], o romance Mea culpa, de Lígia Junqueira Caiubi, cujo título fora inspirado na cantora francesa Edith Piaf, é anunciado com destaque. A capa do livro, elaborada com a criatividade singular de Darcy Penteado, foi enfatizada como uma peça artística por si só.

Ilustração do conto “Avó”, escrito pelo próprio Darcy, Folha de S.Paulo, suplemento Folha Feminina, 29 maio 1966.


Outra escritora que pôde contar com as ilustrações do artista foi Lygia Fagundes Telles [10], em Histórias escolhidas. Esse livro reuniu uma seleção de contos premiados no concurso de autores nacionais das editoras Círculo de Leitura e Melhoramentos. As ilustrações de Darcy Penteado adicionaram uma dimensão visual única a essa obra literária.

Além disso, o livro Aventuras de Eduardo, de Elos Saad [11], voltado ao público infantil, também se beneficia do talento de Darcy Penteado. Embora destinado a crianças, as narrativas do livro eram susceptíveis de encantar também os adultos, com ricas ilustrações e capa cuidadosamente elaborada pelo artista.

Assim, Darcy Penteado não apenas deixou sua marca nas artes plásticas, mas também contribuiu de maneira significativa para realçar obras literárias com suas ilustrações e capas cativantes.

Ilustração do livro Infâncias, de Graciliano Ramos, 1966. Acervo Biblioteca Municipal Arthur Riedel, São Roque (SP).


Arte e rebeldia: marcando uma época


Nos anos de 1960, a obra de Darcy Penteado se destacou como um reflexo vibrante e desafiador da efervescência cultural da época. Em meio a um cenário de mudanças sociais, políticas e culturais, o artista chancelou sua marca nas artes plásticas, apresentando um corpo de trabalho que, além de encantar o público, o provocava a pensar mais profundamente sobre o mundo ao redor.

Seu estilo, marcado pela ousadia, capturou a energia e a vitalidade dos anos 1960. Suas pinturas, repletas de figuras humanas, paisagens urbanas e cenas do cotidiano, eram provocativas e questionadoras. No entanto, sua arte não se limitava à estética, ela carregava uma mensagem crítica e política.

Além disso, o artista introduziu o futilismo, movimento artístico intrigante e provocativo, que desafiou as convenções da época e levou a discussão sobre a futilidade e a ironia à vanguarda do cenário artístico. Assim como a Pop-Art, refletia a atitude irreverente e cínica da sociedade em relação ao mundo contemporâneo.

Em resumo, os anos de 1960 foram uma época de profunda transformação e agitação cultural, e Darcy Penteado emergiu como um dos artistas mais icônicos desse período. Sua obra não apenas refletiu os desafios e as contradições da sociedade da época, mas também contribuiu para a discussão crítica e a evolução das artes plásticas no Brasil.

[1] Jornal O Estado de S. Paulo (Suplemento Literário), 7 out. 1961. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=098116x&Pesq=darcy%20penteado&pagfis=1532. Acesso em: 21 out. 2023.

[2] “O CENÓGRAFO – Trata-se de Darcy Penteado, artista plástico dos mais renomados de São Paulo, com triunfos em várias áreas, e bem-sucedido na cenografia. Darcy Penteado tem também colaborado com seu bom gosto em capas de livros [...], e são famosos seus retratos de personalidades. Sua presença na cenografia não pode deixar de ser bem recebida”. Fonte: Correio da Manhã, 7 jun. 1962. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=089842_07&pagfis=29625. Acesso em: 21 out. 2023.

[3] Catálogo da exposição retrospectiva “14 anos de desenho”. Casa do Artista Plástico de São Paulo. São Paulo, 1961.

[4] A Galeria das Folhas foi fundada em São Paulo em 1954, desempenhando um papel significativo na promoção e exposição de obras de artistas plásticos brasileiros. Ficou conhecida por apresentar exposições de artistas renomados e emergentes e por promover a construção do mercado de arte no país. Fonte: SOUZA, Fernando Oliveira Nunes de (Isai Leiner: um homem de negócios, homem das artes, 2019).

[5] Jornal Estado de Minas, 5 jan. 1962.

[6] LEMOS, César (Via Crucis post pop. Manchete, 16 abr. 1966).

[7] LAUS, Harry (A orgia festiva dos post-pop. Entrevista com Darcy Penteado. Jornal do Brasil, 21 abr. 1966).

[8] LEMOS, César (Via Crucis post pop. Manchete, 16 abr. 1966).

[9] Jornal O Estado de S. Paulo, 2 abr. 1960. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=098116x&Pesq=darcy%20penteado&pagfis=1074. Acesso em: 21 out. 2023.

[10] Jornal O Estado de S. Paulo, 11 fev. 1961. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=098116x&Pesq=darcy%20penteado&pagfis=1344. Acesso em: 21 out. 2023.

[11] Jornal O Estado de S. Paulo, 19 jan. 1963. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=098116x&Pesq=darcy%20penteado&pagfis=1916. Acesso em: 21 out. 2023.

1970

Darcy Penteado: expressões artísticas nos Anos de Chumbo

Nesta década, a sombra da ditadura militar se estendeu sobre o cenário da arte brasileira, impactando a preservação de obras de arte fora de acervos públicos. Artistas foram moldados por instituições de arte e sistemas de valorização econômica e simbólica, muitas vezes sendo mitificados ou, o inverso, desaparecendo da cena artística.

As manifestações culturais no Brasil refletiram uma forma de questionamento e autorregeneração focada nos mecanismos da produção artística. No teatro, sobreveio a crítica aos “teatros empresas” e o aparecimento de grupos que promoviam uma abordagem coletiva: Ornitorrinco e o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone são exemplos.

O cinema de perspectiva popular buscava narrativas inovadoras, não lineares, destacando aspectos marginais da cultura brasileira. A crescente indústria cultural, apesar de refletir o establishment , contribuiu para o desenvolvimento de diversas áreas artísticas. No jornalismo, se fortalecia uma imprensa de resistência, denominada alternativa, sendo O Pasquim um de seus principais representantes, formado por uma equipe de renomados ilustradores, chargistas e jornalistas, como Jaguar, Ziraldo, Millôr Fernandes, Fortuna e Tarso de Castro. No telejornalismo, a TV Cultura apresentou A Hora da Notícia.

A teledramaturgia e o telejornalismo desempenharam papéis essenciais na homogeneização da mensagem, alinhando-se mais a questões mercadológicas que aos interesses do governo ditatorial. A expansão das telecomunicações foi notável, com o número de lares com televisão crescendo de 4 milhões em 1970 para 16 milhões em 1980.

A década testemunhou intensa experimentação e reconsideração dos paradigmas artísticos, ampliando o campo das artes com a introdução de novos meios de expressão e a inter-relação entre diversas manifestações artísticas. O conceito de performance se expandiu das artes cênicas para as artes plásticas, tornando-se uma categoria tecnocrática na sociedade contemporânea.

Nas artes plásticas, houve diversificação com o uso de materiais, linguagem escrita e experimentação com o corpo. O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) destacou-se como um centro experimental de liberdade artística, acolhendo propostas arrojadas e fornecendo aos artistas uma alternativa à Bienal de São Paulo.

Essas manifestações evidenciaram um período de coexistência entre a experimentação cultural e o “vazio cultural” propagado pelo Estado autoritário, revelando uma transição entre paradigmas político-culturais que culminariam no inevitável redirecionamento da produção artística.

No contexto cultural, a predominância das pautas controladas pelo Estado foi mais evidente na primeira metade da década, com a censura e a repressão afetando artistas de todas as áreas.

Primeiro sentado, da esquerda para a direita, Darcy Penteado em foto do jornal Última Hora, matéria sobre violência policial contra prostitutas, dez. 1978. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


Com a dissolução de companhias de teatro e restrições na produção cinematográfica, novas formas de produção cultural emergiram, muitas vezes alinhadas às demandas mercadológicas. A música, embora tenha alcançado grande difusão na década anterior, também experimentou desorientação devido à influência da indústria fonográfica e às nefastas pressões políticas do período.

É triste lembrar que a repressão perpetrada pelo governo militar não se limitou à arte, mas a toda a sociedade brasileira. A ditadura instigou medo, ódio e preconceito contra homossexuais, resultando em prisões, perseguições e fechamento de locais frequentados por eles. Artistas como Madame Satã, Rogéria, Ney Matogrosso, Darcy Penteado, entre outros, colaboraram para a luta e visibilidade da comunidade gay, desconstruindo estereótipos.

Darcy Penteado, reconhecido por sua contribuição à arte homoerótica brasileira, enfrentou as adversidades de uma sociedade conservadora e repressiva. Suas obras transcenderam os limites tradicionais ao oferecer uma narrativa visual ousada da sexualidade humana.

Ilustração para matéria do jornal Lampião da Esquina, 1978, edição nº 0.


Após o Ato Institucional nº 5 (AI-5) – assinado em 13 de dezembro de 1968 –, houve intensificação da caça aos homossexuais, pois, na visão militar, faziam parte do grupo de sujeitos subversivos de quem queriam distância. Criou-se até mesmo uma comissão de investigação governamental, que resultou em perseguição e demissão de funcionários públicos “suspeitos” de não se encaixarem nos ditames do regime autoritário.

O movimento gay, buscando a normalização da identidade homossexual, tornou-se uma resistência à ditadura, causando receio nos conservadores. A atuação repressiva do AI-5 [1], que iniciou o período conhecido como Anos de Chumbo, esterilizou, controlou e direcionou a produção cultural, enquanto o denominado “milagre econômico” e a ascensão da indústria cultural persistiam.

No âmbito da vida privada, o medo de que a revolução sexual em trânsito abalasse as estruturas do sistema fez com que o governo ditatorial regulasse mais ainda a vida dos cidadãos. Nesse contexto, o movimento gay enfrentou perseguições intensas, com censura às suas formas de expressão.

Em meio a esse cenário, surgiu o jornal Lampião da Esquina, periódico da imprensa alternativa que circulou no país entre 1978 e 1981 e dava voz ao movimento, tendo atuado de maneira decisiva para a afirmação e visibilidade da comunidade homossexual. Sendo um jornal pioneiro dedicado à comunidade LGBTQIA+ [2] no Brasil, afrontou a ditadura militar ao abordar temas como identidade, violência e aceitação, destacando-se pelas denúncias de perseguição, violência e censura.

Darcy Penteado, presente!


Durante a década de 1970, Darcy Penteado tornou-se presença constante nos jornais, catálogos de exposições e revistas brasileiras, refletindo o cenário artístico do momento. Com sua habilidade distintiva, o artista conquistava cada dia mais os espaços tradicionais de galerias e exposições; as páginas dos jornais eram uma extensão desse fato e uma forma de aproximar o público da expressão artística.

Diversos periódicos de várias localidades do país e catálogos de arte foram testemunhas e promotores de suas obras, destacando exposições, lançamentos de livros e colaborações artísticas. A assiduidade com que o artista aparecia nas manchetes e páginas dedicadas à arte não apenas mostrava sua influência na cena cultural, como também evidenciava a importância da intersecção entre a arte contemporânea e os meios de comunicação.

Noticiado no jornal santista A Tribuna [3], o ano de 1970 teve em maio uma exposição de Darcy Penteado em A Galeria, da capital paulista, com obras que retomavam a motivação dos brinquedos infantis em preto e branco.

Ainda neste ano, era celebrado os 50 anos da Cia. Editora Nacional, cuja comemoração contou com o lançamento de uma edição refinada do livro Alice no país das maravilhas [4], de Lewis Carroll, com tradução de Monteiro Lobato. Darcy fora contratado anos antes para criar as ilustrações dessa obra, o que demonstra a importância que a editora quis conferir à publicação. Em 1971, o artista é convidado para a 5ª Mostra de Ilustradores para Crianças, em Bolonha (Itália) para expor seus originais de Alice. Diga-se de passagem que a Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha existe desde 1964 e é o espaço mundial de negócios desse nicho do mercado editorial, pois reúne editores, agentes literários, autores e ilustradores de diversos países, com marcante participação do Brasil em suas edições; portanto, a melhor vitrine para esse talento de Darcy Penteado.

Capa e ilustração do livro Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, edição especial 1985, Companhia Editora Nacional.


Continuando o ano de 1971, o jornal Diário da Noite [5] divulga a exposição “A arte amável de Darcy Penteado” na Galeria Bonfiglioli (de São Paulo, capital), que reuniu uma mostra de trabalhos do artista desde 1964 de forma inusitada. Os desenhos foram dispostos em grandes painéis verticais, proporcionando uma apresentação visual única. Uma atração destacada foi a abordagem interativa em que os espectadores podiam despir, puxando uma corda, figuras históricas como a rainha Elizabeth da Inglaterra e o infante Dom Manuel Osório de Zuniga – da pintura do artista espanhol Goya em 1787-88 –, representados nas obras. Em seu Curriculum levemente humanizado [6], Darcy se refere a essa exposição como “Arte não amável”, dizendo que tentava “[...] com ironia, tragicomédia e [algo de] patético, exprimir, em linguagem pictórica, um certo ressentimento em relação ao mundo” [7].

Com “Arte não amável”, subentende-se que o artista quis dizer também que era uma exposição que se contrapunha ao status quo dos seus retratos de personalidades. Vale mencionar que, a essa altura, Darcy já havia se tornando um dos retratistas mais populares também entre famosos internacionais. Retratou as atrizes Audrey Hepburn (Bonequinha de Luxo) e Marisa Berenson e a escritora Françoise Sagan, entre outras.

Fotos Darcy e Audrey Hepburn, déc. 1970. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


Numa entrevista dada ao jornalista Luiz Ernesto de A Tribuna [8] foi publicada a foto da atriz italiana Silvana Mangano posando para Darcy Penteado em Roma. Sobre particularidades do artista, o periódico aponta:

Darcy Penteado, 45 anos, solteirão impenitente, o rosto corado dos vinhateiros da terra onde nasceu – S. Roque. Educado, gentil, refinado, descontraído, superamável, mora aqui na Europa, seis meses por estação. Seu apartamento de cobertura na zona dos jardins de alto luxo e bom gosto – ali estão arcas romanas, mesas e cadeiras de “fiber glass”, belíssimos pratos “art nouveaux”, vitrôs coloridos, estufas italianas, estátuas neoclássicas, roupas de soldados jordanianos, e, claro, desenhos seus. Darcy ali, pintor, desenhista, cenógrafo, retratista, decorador, publicista e até arquiteto “de araque”. Falar é um de seus fracos.

As idas e vindas de Darcy à Itália foram fundamentais em sua carreira e significativas para o seu desenvolvimento profissional. A relação dele com a herança artística daquele país europeu envolveu um valioso intercâmbio cultural e influências mútuas entre o Brasil e o cenário artístico italiano. Durante suas passagens pela Itália e viagens por outros países da Europa, Darcy Penteado teve a oportunidade de mergulhar em diversos movimentos, técnicas e estilos artísticos, frequentemente destacados na imprensa brasileira.

Exemplo desse intercâmbio são as exposições de 1973 sob o título “O neodecadentismo de Darcy Penteado”, fase influenciada por Gustav Klimt e Alphonse Mucha, expoentes da Art Nouveau.

Para Darcy, não havia zona de conforto!


Na 12ª Bienal de São Paulo de 1973 [9], no audiovisual Proposta do amor, Darcy Penteado empreendeu um projeto artístico para denunciar a intolerância e violência globais. Inicialmente concebido como uma série de telas neorrealistas, esse trabalho buscava contrastar a violência com o amor não preconceituoso. Focando em relacionamentos sem convenções, o projeto trouxe diversas situações de amor, cada uma representada por uma cor correspondente a certo tipo de relacionamento: desde o amor adolescente (azul) até o amor sensual (vermelho) e o familiar (verde-claro). Assim, o artista explorou a diversidade e a complexidade do amor em uma obra evidentemente transgressora, que almejava a comunhão universal através do amor espiritualizado.

Catálogo audiovisual Proposta do amor para a 12ª Bienal de São Paulo, 1973. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


Em 1974, Darcy Penteado elabora cenografia e figurino de Dom Juan, para o Balé Teatro, e desenha o figurino do espetáculo Psycospeculum, do Balé Stagium, ambos da cidade de São Paulo. Em 1979, ele compõe cenografia e figurino para a ópera As bodas de Fígaro, apresentada no Teatro Municipal de São Paulo.

Nesse meio tempo, a produção da peça Volpone [10], de Ben Johnson e direção de Antônio Abujamra, estreada no Auditório Augusta em 1977, teve um componente de peso que elevou ainda mais a experiência teatral: os figurinos desenhados por Darcy Penteado não eram meramente adereços, cada cor escolhida, cada detalhe costurado, havia sido decidido conscientemente para refletir e acentuar as nuances psicológicas dos personagens, eram extensões de suas personalidades.

Um dos pontos altos desse espetáculo foi o figurino usado pela talentosa atriz Laura Cardoso. Cada detalhe de sua indumentária se encaixava em perfeita harmonia com o propósito do figurinista, destacando sua criatividade em traduzir visualmente a essência dos personagens.

Destaque-se também a estreia em 1978, no Auditório Augusta, de uma intrigante trama de três personagens, habilmente entrelaçados, em que um travesti emergia como elemento central na conexão entre os outros dois protagonistas. Trata-se de Engrenagem do meio, peça escrita por Darcy Penteado.

Sua produção enfrentou desafios singulares, especialmente na busca por um “travesti ator, e não apenas um ator travestido”, segundo o próprio autor diz e continua: “Precisávamos de mais do que um rosto bonito e presença de palco. Era crucial encontrar alguém com a profundidade artística necessária para encarnar o personagem” [11]. Ressaltou ainda que, embora houvesse vários travestis talentosos com experiência em shows, a falta de habilidades dramáticas tornava o desafio considerável e que os bastidores da peça exigiram da equipe dedicação extraordinária na busca por autenticidade e excelência. Nas palavras do autor: “Pela primeira vez, dar-se-á um tratamento normal aos homossexuais no teatro, pois são seres humanos saudáveis, com suas qualidades e defeitos, claros e não doentes mentais ou caricaturas de gente, como se fez até agora” [12].

Apesar do tom ousado, a Engrenagem do meio apresentou um conceito de moral que, segundo o escritor e cenógrafo da peça, procurou expor verdades sem agressões objetivas, transformando a narrativa em uma comédia envolvente e divertida. Com sutileza e elegância, o espetáculo atingiu seu objetivo, promovendo uma representação mais humanizada e inclusiva dos homossexuais no universo teatral.

Cartaz da peça de teatro Engrenagem do meio, 1978. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


Entre linhas: Darcy Penteado e a literatura engajada


Em 1976, Darcy Penteado causou ondas de transformação em São Paulo ao assumir publicamente sua homossexualidade e publicar A meta, seu primeiro livro de contos pela Edições Símbolo.

Capa do livro A meta, 1976, Edições Símbolo. Acervo pessoal Jaqueline Ferreira.


O jornal Correio Brasilense [13] dedicou generosas duas páginas para apresentar a obra de Darcy ao público, acompanhadas por uma rica entrevista com o autor, da qual se destaca:

[...] a chegada de Darcy Penteado na área literária, depois de comprovada competência na área plástica, deveria ser saudada com maior entusiasmo. Está certo que o seu enfoque literário não é inédito e nem tampouco novo, mas é complementar (por colocar o “problema homossexual” numa classe “A” com tangências “B” positivo, e com uma liberdade de expressão e de conhecimento de causa...). É certo, também, que o livro não revolucionou a mentalidade brasileira, e nem tampouco solucionou problema de ninguém, mas de uma coisa a gente pode ter certeza, ele abriu portas e deu novas perspectivas.

Ao lançar luz sobre as histórias, casos, linguagem, peculiaridades, aberrações e ilusões presentes nesse universo, Darcy provocou reflexões sobre a riqueza e a complexidade da comunidade LGBTQIA+. O autor sugeria ser o tema vasto o suficiente para preencher as páginas de uma coletânea de livros, com a cidade inteira envolvida nesse processo de autodescoberta e aceitação.

Com o título “Darcy Penteado: depois da meta, um novo alvo”, o Correio Braziliense [14] deu espaço a uma reportagem sobre o segundo livro do autor, Crescilda e os espartanos, lançado também pela Edições Símbolo em 1977.

Capa do livro Crescilda e os espartanos, 1977, Edições Símbolo. Acervo pessoal Jaqueline Ferreira.


Segundo o jornal, Darcy Penteado marcou seu retorno às estantes das livrarias com duas intrigantes novelas e cinco contos, explorando mais uma vez a essência humana. A jornada literária começa no prefácio/introdução, onde o autor, sem hesitar, enfrenta seus críticos respondendo às análises de A meta, sua obra inaugural.

No novo trabalho, Crescilda e os espartanos, Darcy não apenas firmou sua posição como escritor, mas também convocou os incrédulos a reconsiderarem suas dúvidas. Demonstrando maestria, o autor proclamou que, na verdade, tudo se resumia a literatura e que a interpretação de cada leitor era única e subjetiva.

Assim, convidou os leitores a explorarem sua narrativa sob diferentes perspectivas, destacando a riqueza da experiência literária que transcendia as palavras no papel. Através de suas histórias, ele continuou a mergulhar nas complexidades da condição humana, oferecendo uma obra provocadora que enriqueceu a compreensão de seus leitores.

Em 1979, lançou seu terceiro livro pela Livraria Cultura Editora, Teoremambo, de contos. Em “Bofe a prazo fixo” [13], Darcy mostra a masculinidade hegemônica por meio de dois personagens, Ângelo e seu primo. Ambos jovens e residentes em um bairro operário, são descritos com constituição física robusta: Ângelo, “[...] corpo bem modelado com ombros fortes e pernas alongadas”; o primo, “[...] corpo atlético, elaborado pelo futebol dos domingos e pela bigorna da oficina” [16]. Esses atributos corporais são explorados como marcadores desse tipo de masculinidade.

Capa do livro Teoremambo, 1979, Livraria Cultura Editora. Acervo pessoal Jaqueline Ferreira.


Ao desafiar as normas sociais de sua época, Darcy Penteado deixou um legado literário que contribuiu significativamente para a representatividade e entendimento da diversidade sexual. O pontapé inicial de A meta permanece como um marco na história da literatura brasileira, relembrando um tempo em que a coragem de um autor confrontava as convenções sociais e pavimentava o caminho para maior compreensão da sexualidade.

O jornal Lampião da Esquina


A parceria entre Darcy Penteado e o jornal Lampião da Esquina marca um momento importante na resistência cultural brasileira, por contestar as convenções, ajudar a desmantelar estereótipos e fortalecer a comunidade LGBTQIA+.

O Lampião nasceu no rastro da imprensa alternativa, impulsionado pela visita do editor do Gay Sunshine, revista homossexual dos Estados Unidos, a uma reunião na residência de Darcy Penteado. Inicialmente concebido em 1978, o jornal homossexual não erótico circulou até 1981, abrindo caminho para uma identidade nacional mais diversa. Com 38 edições, incluindo o número zero, chegou a alcançar circulação de 10 a 15 mil exemplares em todo o país. Darcy foi um dos fundadores, editor e articulista do jornal, que tinha entre seus colaboradores os escritores Aguinaldo Silva, Caio Fernando Abreu e João Silvério Trevisan e o antropólogo Peter Fry.

Capa do jornal Lampião da Esquina, 1978, edição nº 0. APPAD grupo Dignidade, Centro de Pesquisa e Documentação Social da Unicamp.


O nome “Lampião” [17], inspirado no conhecido cangaceiro, simbolizava coragem e iluminação para os homossexuais, incentivando-os a sair do “gueto” e a viver com liberdade. Enfrentou tabus ao explorar questões como prostituição e violência e entrevistar personalidades LGBTQIA+.

O jornal proporcionava visibilidade a importantes intelectuais e representantes de minorias, incluindo negros, mulheres e indígenas, através de entrevistas com personalidades públicas como Marta Suplicy, Lecy Brandão, Norma Bengel, Zezé Mota, entre muitos outros.

Apresentando-se em formato tabloide, o Lampião tinha seções fixas como “Cartas na Mesa”, “Esquina”, “Reportagem” e, a partir do número cinco, “Bixórdia”. Além disso, oferecia espaço para informações culturais e colaborações de diversos autores a cada edição.

Inicialmente voltado para tirar o gay da margem social, o Lampião evoluiu ao longo do tempo, tornando-se mais audacioso ao incluir ensaios sensuais e abordar temas mais controversos. A criação do jornal refletiu a necessidade de transformar a percepção da sociedade sobre a comunidade gay e integrar seu discurso à realidade social.

Nu masculino, 1973. Colagem com esmalte e anilina, óleo, pastel e acrílico. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


Abordando temas diversos, desde identidade até casos de violência e perseguição, o Lampião destacou-se pela postura política, denunciando perseguições, atentados e a censura do governo ditatorial. Promoveu debates sobre a aceitação da homossexualidade, buscando desmistificar estereótipos e humanizar os homossexuais perante a sociedade conservadora.

Além disso, teve papel ativo na divulgação da arte homoerótica de Darcy Penteado, contribuindo para o reconhecimento do artista como ativista da causa. Darcy escolheu o caminho da expressão franca, desconstruindo tabus e normas sociais, tornando-se um ato de resistência e contribuindo para a construção da identidade gay no Brasil.

Enfrentando censura, atentados e inquéritos, Lampião da Esquina transcendeu à mera informação; foi uma ferramenta de resistência e construção de identidade gay em um período turbulento da nossa história. Na sombra da ditadura militar dos anos de 1970, artistas e ativistas se colocaram como vozes audaciosas, encarando as limitações do regime autoritário.

Em um contexto de perseguição, o jornal opôs-se abertamente às políticas repressivas da ditadura, representando uma luz na escuridão ao oferecer um espaço para expressão, debate e solidariedade dentro da comunidade gay. A união entre Darcy Penteado e Lampião da Esquina é um testemunho inspirador de coragem e resistência na luta por liberdade e igualdade.

[1] O AI-5 terminou em 1979 com a anistia aos presos políticos e o fim da censura. Mesmo após isso, a narrativa oficial continuou sendo influenciada pelo “milagre econômico”, que respaldou o governo no uso de medidas repressivas para se legitimar e criar a imagem de país em desenvolvimento.

[2] A sigla LGBTQIA+ se refere à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queers, intersexuais e assexuais; o sinal “+” significa orientações sexuais ilimitadas.

[3] A Tribuna, 13 maio 1970, p. 9. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=153931_02&pesq=%22exposi%C3%A7%C3%A3o%20darcy%20penteado%22&pasta=ano%20197&hf=memoria.bn.br&pagfis=3745. Acesso em: 12 nov. 2023.

[4] A Tribuna , 11 nov. 1970. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=153931_02&pesq=%22darcy%20penteado%22&pasta=ano%20197&hf=memoria.bn.br&pagfis=9157. Acesso em: 12 nov. 2023.

[5] Diário da Noite, 24 set. 1971, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=221961_05&pesq=%22exposi%C3%A7%C3%A3o%20darcy%20penteado%22&pasta=ano%20197&hf=memoria.bn.br&pagfis=16025. Acesso em: 12 nov. 2023.

[6] Darcy Penteado: Curriculum levemente humanizado (PREFEITURA de São Roque [acervo], [198-]).

[7] Diário da Noite, 24 set. 1971, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=221961_05&pesq=%22exposi%C3%A7%C3%A3o%20darcy%20penteado%22&pasta=ano%20197&hf=memoria.bn.br&pagfis=16025. Acesso em: 12 nov. 2023.

[8] A Tribuna , 3 out. 1971, p. 16. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=153931_02&pesq=%22darcy%20penteado%22&pasta=ano%20197&hf=memoria.bn.br&pagfis=19569. Acesso em: 12 nov. 2023.

[9] Catálogo Proposta do amor, 1973 (PREFEITURA de São Roque. Acervo Darcy Penteado, 1988).

[10] Jornal Cidade de Santos, 20 maio 1977, p. 19. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=896179&pesq=%22volpone%22%20%22darcy%20penteado%22&pasta=ano%20197&hf=memoria.bn.br&pagfis=114354. Acesso em: 15 nov. 2023.

[11] Jornal Diário da Noite, 9 maio 1978, p. 17. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093351&pesq=%22engrenagem%20do%20meio%22&pasta=ano%20197&hf=memoria.bn.br&pagfis=73655. Acesso em: 15 nov. 2023.

[12] Idem.

[13] Correio Braziliense, 21 ago. 1977, p. 9. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=028274_02&Pesq=%22darcy%20penteado%22&pagfis=91104. Acesso em: 11 nov. 2023.

[14] Correio Braziliense, 8 jan. 1978, p. 11. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=028274_02&pesq=%22Crescilda%20e%20os%20Espartanos%22&pasta=ano%20197&hf=memoria.bn.br&pagfis=98716 Acesso em:12 nov. 2023.

[15] NASCIMENTO, Dorinaldo dos Santos (Masculinidades rentáveis na ficção brasileira. Letras de Hoje, v. 57, n. 1, 2022).

[16] PENTEADO, Darcy (Bofe a prazo fixo. In: Teoremambo, 1979).

[17] O periódico é lançado apenas como “Lampião”, mas, visando evitar questões de propriedade industrial, a equipe editorial incorpora o complemento “da esquina” já no número 1.

1980

Darcy Penteado: a arte como mobilização

Criação de Darcy Penteado: selo para a “campanha pró-índio”, Lampião da Esquina, 1978-1981. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell’Acqua - São Roque (SP).


No final dos anos 1970, o Brasil vivenciou um período de intensa insatisfação com o regime autoritário, marcado pela crescente perda de legitimidade política do governo militar. A repressão severa contra diversos setores da sociedade alimentou a urgente demanda por abertura política e redemocratização. Esse cenário de efervescência política deu início a um processo de transição da ditadura para a democracia, impulsionado pelas pressões sociais por mudanças políticas significativas.

Nesse contexto, as atividades políticas lideradas por artistas transformaram-se em expressão vital de resistência ao regime militar. A Música Popular Brasileira (MPB), em particular, emergiu como uma poderosa ferramenta na articulação das expressões públicas e privadas dos opositores do governo autoritário. Unindo-se aos músicos, artistas de diversas áreas demonstraram notável capacidade de reunir pessoas em eventos dedicados à luta contra a ditadura e à defesa do direito ao voto direto para a eleição de presidente do Brasil, originando assim o movimento pelas Diretas Já.

Os comícios por Diretas Já tornaram-se eventos emblemáticos na história do país, ocorrendo em vários estados entre 1983 e 1984. Essas manifestações populares tinham como objetivo pressionar o governo pela aprovação de uma emenda constitucional que permitiria eleições diretas.

O comício mais famoso aconteceu em 25 de janeiro de 1984, na Praça da Sé, em São Paulo. O evento reuniu ampla coalizão de partidos políticos, líderes sindicais, civis e estudantis, além de personalidades influentes da cultura, como Chico Buarque, Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Paulinho da Viola, Irene Ravache, Raul Cortês, Fafá de Belém, entre muitos outros. A presença dessas figuras notáveis contribuiu significativamente para dar visibilidade e apoio popular à causa das eleições diretas.

No âmbito das artes plásticas, destacados artistas uniram-se ao movimento, como Glauco Pinto de Moraes, Marcelo Nitsche, Tomie Ohtake, Aldemir Martins e Darcy Penteado. Marcharam com a faixa “Artistas Plásticos”, expressando compromisso com a causa. Darcy Penteado demonstrou sua indignação apresentando-se como “artista e homossexual” e exigindo “o direito à liberdade, ao voto direto” [1].

Mais do que um acontecimento político, o movimento pelas Diretas Já representou uma expressão essencial da cultura política brasileira, evidenciando a interconexão entre indivíduos, motivações políticas e experiências compartilhadas. Grupos inteiros aliaram-se em prol de interesses comuns, numa visão coletiva de transformação política que influenciou o curso histórico do Brasil a partir de então. Foi, acima de tudo, a força que catalisou a formação de uma identidade coletiva capaz de transcender diferenças individuais.

Matéria sobre o movimento Diretas Já, Folha de S.Paulo, 24 abr. 1984. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


Nesse sentido, a atuação de Darcy Penteado, movido por paixão e dedicação, voltou-se especialmente para a promoção da igualdade e defesa dos direitos das pessoas LGBTQIA+. Sua participação abarcava diversas formas de expressão, desde a produção literária até iniciativas contra o preconceito e a discriminação. Seu compromisso com a causa LGBTQIA+ trouxe para o debate a essência da diversidade e inclusão, deixando um legado duradouro na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.

Além disso, suas contribuições para o carnaval e sua presença em algumas exposições de arte do período o consolidaram como uma figura fundamental na transformação cultural e social daquele momento.

O legado de Darcy Penteado na luta pelos direitos LGBTQIA+


Darcy Penteado como editor e articulista do jornal Lampião da Esquina abordava questões que desafiavam as estigmatizações advindas da sociedade da época. Nas páginas do tabloide, o artista não apenas informava, mas também provocava reflexões e debates sobre os problemas enfrentados pela comunidade LGBTQIA+.

Sua influência ia além das palavras impressas no jornal; seus livros, ilustrações e produção artística transmitiam mensagens contundentes, com o intuito de sensibilizar a audiência. Sua atuação era uma resposta audaciosa aos preconceitos arraigados na sociedade.

Darcy destacou-se de maneira significativa na defesa da comunidade LGBTQIA+ durante a passeata contra a infame Operação Rondão [2] ou Operação Limpeza, ocorrida em 1980, na capital de São Paulo. Essa ação, coordenada pela polícia civil e militar e liderada pelo delegado José Wilson Richetti, tinha como objetivo expulsar frequentadores noturnos, especialmente homossexuais, de áreas centrais da cidade, como o Largo do Arouche e a avenida Vieira de Carvalho.

A Operação Limpeza resultou em detenções indiscriminadas de travestis e prostitutas, marcadas por violência e brutalidade. O desfecho desse episódio foi a forçada retirada dos homossexuais das ruas, obrigando-os a se concentrarem em locais fechados para evitar a perseguição da polícia.

Em reação a essa operação policial, sucedeu a maior ação coletiva do movimento homossexual da época. Superando divergências internas, o movimento uniu-se a feministas, estudantes, ao movimento negro e a políticos de partidos de esquerda para protestar contra a violência perpetrada pela polícia. Em 13 de junho de 1980, centenas de pessoas se reuniram nas escadarias do Teatro Municipal e iniciaram uma passeata pelo centro de São Paulo, com a presença ilustre de Darcy Penteado.

Essa manifestação contra o delegado Richetti marcou o ápice da militância homossexual na cidade, antecipando a visibilidade das futuras Paradas do Orgulho Gay. Em meio à ditadura militar, diversos grupos se aproximaram, proclamando seu direito de existir publicamente com deboche e irreverência, refletindo temas atuais sobre corpo, emoção e performance na ação coletiva.

Em carta enviada ao jornal O Estado de S. Paulo em 1983 [3], Darcy Penteado compartilhou suas apreensões como artista, homossexual e cidadão. Sobre a epidemia de Aids, sublinhou a importância de não vincular a doença exclusivamente aos homossexuais. Detalhou a natureza da enfermidade, elucidando como ela compromete o sistema imunológico humano. Empregou uma metáfora impactante, comparando o Brasil a um organismo outrora robusto, agora fragilizado pela “Aids burocrática”, resultante de estatizações, privilégios, má administração e outras problemáticas.

Primeira manifestação no Brasil contestando a violência contra a população LGBT, em São Paulo (SP). Na foto, Darcy Penteado lê uma carta aberta. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


No mesmo ano, Darcy Penteado demonstrou mais ainda seu comprometimento de conscientização sobre a Aids através do “Informe à comunidade homossexual de São Paulo”. Desenvolvido em colaboração com o Grupo Outra Coisa, esse documento acrescentou força ao combate à disseminação da Aids naquele momento.

Além disso, o artista criou o primeiro cartaz de campanha de conscientização e prevenção da Aids, que alertava sobre os riscos e sintomas da doença e incentivava a redução de danos do HIV através da informação. Essa campanha ecoou fortemente na comunidade homossexual de São Paulo. Darcy direcionou incansavelmente seus esforços para educar a população sobre os riscos iminentes da Aids, dava orientações, indicava hospitais para tratamento, entre outras informações imprescindíveis para a comunidade e toda a sociedade.

Material gráfico sobre a AIDS (Cartaz Aids) que compôs a exposição “O charme da bixa brasileira”, 2022. Galeria Recorte, São Paulo (SP).


O cartaz veio a dar forma a uma resposta coletiva para deter a disseminação da doença. O legado do autor permanece como um testemunho do impacto positivo que uma personalidade pública engajada pode ter na conscientização e na promoção da saúde pública.

Em 1984, Darcy Penteado assumiu a liderança em uma reunião com o Secretário de Segurança Pública Michel Temer para abordar casos alarmantes de violência policial contra travestis em São Paulo [4]. O Secretário assegurou que a polícia não deteria homossexuais e travestis por estarem reunidos em locais públicos, mas agiria em casos que violassem o pudor público.

A motivação para essa reunião surgiu das denúncias de violência policial, incluindo relatos angustiantes de travestis detidos em condições de desrespeito aos direitos humanos. Darcy destacou, com ênfase, a ausência de leis que proibissem a prostituição ou o travestismo no país.

Como se vê, a atuação de Darcy Penteado nesse período foi caracterizada por um engajamento político vigoroso. Sua liderança na defesa dos direitos das pessoas LGBTQIA+ evidenciou total comprometimento com essa comunidade. Ao destacar as lacunas no sistema legal e apontar a necessidade de mudanças, o artista demonstrou coragem e dedicação na resistência à discriminação e violência, contribuindo significativamente para a conscientização e defesa dos direitos coletivos em um momento crucial da história brasileira.

“Oi, abre alas que eu quero passar”


À esquerda: foto de Darcy fantasiado de Pierrô, Carnaval de 1981, Escola de Samba Imperatriz leopoldinense, Rio de Janeiro (RJ). À direita: autorretrato Pierrô, 1987. Serigrafia. Imagens do Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


Ao longo dos anos, Darcy Penteado tornou-se presença constante no carnaval, transformando-se em fervoroso entusiasta da festa que transcende fronteiras. Seu coração pulsava em sintonia com a batida contagiante das baterias nos desfiles, sua paixão pelo carnaval era tão vibrante quanto as cores e ritmos que dançavam diante de seus olhos.

Darcy não era apenas um espectador, era uma figura em movimento, uma expressão viva da alegria que transbordava das escolas de samba. Cada passo que ele dava na avenida era uma dança de celebração, uma homenagem à riqueza cultural e à diversidade que caracterizam essa festa.

Há registros de que, em 1977, Darcy Penteado desenhou o figurino e desfilou na ala Pierrôs da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel. No ano seguinte, elaborou o figurino da ala Gaúchos, da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel; para a mesma escola, em 1979, esboçou os trajes masculinos e femininos da ala Corte Portuguesa. Isso no Rio de Janeiro.

Em 1980, anunciou nas páginas dos jornais [5] que estava preparando uma surpresa para o carnaval. Liderando uma ala especial na Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, trabalhou com uma proposta inovadora e estilizada: uma fantasia de “índio” que prometia chamar a atenção.

O pássaro vegetal, 1981. Guache e tinta prateada sobre papel. Desenho para a ala da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, enredo Onde canta o sabiá, 1982. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


O destaque da fantasia era um abacaxi luminoso, cuidadosamente incorporado no lugar tradicional do cocar. Esse elemento peculiar foi alimentado por um dispositivo especial, adicionando um toque de originalidade à indumentária carnavalesca.

Em São Paulo, a Paulistur, empresa por trás da grandiosa celebração carnavalesca no Anhembi, buscava em 1984 um artista plástico imerso na vida pulsante da metrópole para dar vida ao símbolo do carnaval paulistano. Em 1985, a escolha recaiu sobre Darcy Penteado, cujo prestígio ressoava muito além das fronteiras do Brasil.

Há muitos anos, ele era um apaixonado carnavalesco, um entusiasta da festa que permeava suas criações artísticas. A eleição de Darcy como criador do símbolo não fora apenas uma escolha de renome, fora também de lhe permitir manifestar sua sensibilidade única:

Ao ser convidado pela Paulistur a criar a imagem-símbolo do Carnaval Paulista de 1985, minha intenção desde o início foi utilizar um elemento ligado à nossa tradição e ao nosso passado, mas que não se mantivesse alheio ao dinamismo e ao espírito de renovação da cidade. Apossei-me então das listras horizontais da nossa bandeira, prosseguindo com elas em um fluxo central e ascendente, que gerasse as demais cores, por sua vez simbólicas do título “São Paulo, nossa gente” que irá caracterizar o Carnaval da Cidade de São Paulo em 1985 [...] [6].

Imagem-símbolo do carnaval paulistano, 1985. Paulistur. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


Agora, com a oportunidade de dar asas à imaginação, Darcy Penteado tinha diante de si a tarefa de fantasiar o carnaval de São Paulo com seu talento singular. Sua criação não seria somente uma representação visual, mas uma expressão viva de tudo o que a cidade significava para ele, com a efervescência do carnaval.

Para Darcy Penteado, o carnaval era um palco onde a arte, a música e a alegria se entrelaçavam, e ele, com sua presença cativante, contribuía para transformar cada desfile em uma obra de arte efêmera e inesquecível.

Entre palavras, pincéis e introspecção


Indiscutivelmente, a década de 1980 foi caracterizada pelo engajamento político de Darcy Penteado, que incluía sua mobilização em prol da comunidade LGBTQIA+, a defesa de direitos civis e outros aspectos sociais relevantes para o cidadão brasileiro.

Nota-se esse engajamento inclusive no romance Nivaldo e Jerônimo, de sua autoria, em que ele imerge em uma reflexão profunda e contemporânea sobre um tema desafiador para as estruturas ideológicas da esquerda brasileira: a integração de militantes revolucionários homossexuais em suas fileiras. Em busca de respostas, o escritor fez uma análise perspicaz das complexas relações da esquerda com os inúmeros preconceitos existentes na sociedade.

Fernando Morais, que assina a apresentação da obra, destacou a coragem do autor em explorar terrenos ainda pouco desbravados. Observou que, com Nivaldo e Jerônimo, Darcy avançava pela trilha já aberta por Fernando Gabeira em suas obras, especialmente ao tratar as relações existentes na esquerda brasileira e os preconceitos associados à homossexualidade.

No livro, Darcy Penteado não se limitou a questionar a aceitação dos militantes homossexuais pela esquerda revolucionária, explorou nuances das relações e atitudes da esquerda a respeito da homossexualidade e propôs uma abordagem mais compreensiva das complexidades envolvidas nessa integração. A narrativa convida o leitor à reflexão, a repensar suas próprias concepções acerca da intersecção entre política e identidade.

Capa do livro Nivaldo e Jerônimo, 1981, editora Codecri. Acervo pessoal Jaqueline Ferreira.


Segundo Fernando Morais, “Descrições detalhadas e minuciosas da região da guerrilha revelam que o autor era, na época, um especialista na saga do Araguaia, assim como expõe com riqueza as mazelas da vida do homossexual” [7].

Ao tocar no tema, Darcy Penteado contribuiu tanto para o entendimento do passado, como também para o diálogo necessário naquele momento presente e futuro da esquerda brasileira.

Essa incursão profunda de Darcy no tecido social se conecta harmoniosamente com o ano de 1983, quando São Paulo presenciou um espetáculo visual marcante, cortesia do renomado artista plástico. Sua exposição no Renato Magalhães Gouveia Escritório de Arte foi um mergulho nas complexidades da infância, capturadas de maneira singular pelo artista na série “Sombras da infância”.

As espiãs, 1987. Serigrafia colorida. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


A mostra contou com um belo catálogo que celebrou 25 telas e 10 desenhos. Cada página do catálogo ganhou vida com reproduções coloridas, proporcionando aos visitantes uma aproximação íntima do mundo artístico do autor.

Renato Magalhães Gouveia, apreciador da obra de Darcy, compartilhou suas reflexões sobre o impacto que o artista lhe causava:

Darcy Penteado foi um dos raros artistas reconhecíveis em qualquer região cultural deste país. Foram mais de trinta anos de intenso fazer em muitas áreas de expressão artística: do desenhista ao cenógrafo, do pintor ao novelista, do dramaturgo ao desenhista, numa girândola sem fim em que o foco da admiração geral o iluminou fazendo sua obra cintilar [8].

Gouveia comparou a experiência visual da exposição a uma radiografia de um álbum de família, onde a aparência externa luta para resguardar um íntimo que a arte de Darcy buscava e revelava por inteiro. Cada obra parecia capturar momentos específicos da infância, bem como os sentimentos e as nuances de sua vida.

Ao longo de sua trajetória marcada pela multiplicidade de expressões artísticas, Darcy Penteado mostrou profunda intersecção entre as artes plásticas e a literatura. Em 1983, anunciou com entusiasmo o que viria a ser seu próximo livro: Menino insone. Nessa nova empreitada, os leitores eram instados a explorar as complexidades de um personagem literário que ecoava a série “Sombras da infância”.

Em entrevista ao jornal Cidade de Santos, na mesma ocasião, Darcy comunicou que, simultaneamente, estava envolvido na criação de um ensaio sobre sexualidade e na elaboração de seu novo romance. Em suas palavras:

Artes plásticas e literatura seguiram comigo, até agora, dois dos meus muitos caminhos diversos. Porém, ainda este ano publico Menino Insone, onde o personagem literário identifica-se bastante com a minha atual série pictórica, “Sombras da Infância”, no que ela tem de detalhista, introspectiva e inquisidora das razões esquecidas da memória. Como se vê, aos poucos vou juntando as várias partes de mim que ficaram espalhadas pelos caminhos da vida [9].

A sinergia entre a série pictórica e o novo livro demonstrava a habilidade de Darcy em costurar as diferentes facetas de sua identidade. A convergência entre literatura e artes plásticas mostra a riqueza de sua abordagem artística, que transcende limites disciplinares e convida o público a uma imersão única no universo criativo do artista.

Capa do livro Menino insone, 1983, editora Soma. Acervo pessoal Jaqueline Ferreira


Num mergulho profundo na memória, Darcy Penteado inaugurou, em 1985, a exposição “Tema e variações” na Galeria de Arte Alberto Bonfiglioli. A mostra, composta por 37 obras, revelou a maestria do artista ao explorar diversos suportes e materiais, incluindo 14 pinturas (acrílica e técnica mista sobre tela), 14 desenhos, 5 aquarelas, 3 gravuras e uma monotipia.

O título “Tema e variações” ganhou significado à medida que Darcy, inspirado por fotos antigas, isolou um tema e teceu variações intrincadas ao redor de cada um. Diz ele:

Meu sistema habitual de trabalho de pintura é o oposto daquele utilizado pelos pintores tradicionais: partindo da foto antiga elaboro uma tela e, dela, posteriormente, vou retirando detalhes e fragmentos; ou então, mantendo a composição geral, mudo os suportes, diversificando também os materiais [10].

A exposição, permeada pela atmosfera nostálgica de fotos antigas, trouxe a público as relações de amizade e com os familiares, especialmente os laços maternos. O clima geral da mostra refletiu a habilidade de Darcy Penteado em capturar visualmente o passado e transmitir a riqueza das conexões humanas atemporais.

Sob o título “Darcy Penteado, a valorização da solidão e da privacidade”, o jornal santista A Tribuna [11] dedicou mais de meia página, em 19 de março de 1986, para divulgar a exposição do artista na Galeria de Arte do Centro Cultural Brasil-Estados Unidos. A reportagem destacou a nova fase de Darcy e apontou a conquista da privacidade do artista como um aspecto central de seu momento.

A mostra apresentou 34 trabalhos, todos frutos da fase de interiorização do autor. Destes, apenas 3 eram obras de 1986, enquanto as demais eram produtos de três anos de intensas realizações, abrangendo pinturas, desenhos, aquarelas, gravuras (lito e metal) e até pinturas acrílicas. Uma diversidade de formas e técnicas que refletia a riqueza do processo criativo do artista, compartilhado em uma entrevista:

Eu estou nessa fase [...] há cinco anos, porém fui mudando técnicas e fazendo pesquisas; todo o meu trabalho é baseado em arquivos de memória, antigas fotos de família e mesmo as paisagens são de memória, ou seja, estão ligadas ao mesmo tempo das fotos. Nessas paisagens (linguagem das nuvens) existe um fator psicológico, um estado de espírito, que é a procura do silêncio e da solidão [12].

Mais do que nunca, a exposição exteriorizou aquele momento singular de sua trajetória. Cada obra foi um retrato vívido do anseio de Darcy por solidão e introspecção. Esse desejo transparece nas obras que exploram a dinâmica familiar e as paisagens plácidas e singelas.

3 gerações, 1985. Serigrafia. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


Não eram apenas representações visuais, mas janelas de acesso público à alma do artista, seus pensamentos mais profundos e o estado de espírito em que se encontrava naquele momento. A linguagem das nuvens nas paisagens, por exemplo, carregou um peso psicológico, transmitindo a busca constante por silêncio e solidão, elementos essenciais naquele capítulo específico da vida de Darcy.

Em novembro de 1986, em comemoração aos 60 anos de vida de Darcy Penteado, a Galeria de Arte André, em São Paulo [13], expõe trabalhos seus. O óleo sobre tela, fluido e majestoso, substitui o acrílico pela primeira vez, como se o próprio tempo desacelerasse para permitir que cada pincelada de Darcy secasse com a dignidade que merecia. Um material mais nobre, que demorava a secar, proporcionava ao artista uma dança mais lenta com sua paleta de cores, um balé íntimo entre a mente criativa e a matéria-prima.

Darcy, mestre das memórias capturadas, continuava sua jornada pelo realismo, inspirado por fotos antigas de família e de paisagens que se tornaram janelas para tempos imemoriais.

Entre as telas, emergiu a Dama Negra, uma musa enigmática que aparecia em várias obras como uma deusa do passado que sussurrava segredos sobre a morte.

A dama da noite, nº 1 e nº 2, 1983. Litogravura. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


Sob o título “A morte sem medo”, uma conversa de Darcy com Nancy Nuyen [14], publicada no jornal Folha da Tarde, exibiu um diálogo íntimo com a finitude.

Longe de ser um símbolo tétrico, a Dama Negra é uma mulher de força inigualável, que percorre caminhos iluminados nos quadros do artista. A ideia da morte, para Darcy, nascia no instante em que a vida cessava, um segundo que transcende as dores e doenças, onde a jornada começa.

Assim, as telas de Darcy Penteado haviam se tornado testemunhas silenciosas de um diálogo entre o passado e o presente, entre a luz e a sombra, entre a vida e a morte. Cada pincelada, um conto; cada obra, um capítulo na narrativa do artista.

Autorretrato do encontro com a dama negra, 1986. Óleo sobre tela. Catalógo da exposição em homenagem a Darcy Penteado, Galeria de Arte André, 1988. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


O artista se aquieta, seu acervo pede melhor abrigo


Morando na Serra da Cantareira, em São Paulo, longe das agitações urbanas, Darcy Penteado encontrou refúgio [15]. As ruas movimentadas deram lugar à natureza, a cidade ficou para trás enquanto o artista se embrenhava na serenidade da paisagem. Manteve constante seu trabalho artístico e a busca por qualidade de vida em meio aos desafios de uma existência que amava intensamente.

A Noiva do Bosque, 1987. Litografia. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


Em 3 de dezembro de 1987, São Paulo se despedia de Darcy Penteado. Uma página completa do jornal Estado de S. Paulo prestou homenagem a ele, que, segundo o periódico, “não temia a morte” [16].

A imagem mais marcante de Darcy persistia na memória coletiva; sua figura dinâmica percorrendo diversos lugares: delegacias, redações de jornais, praças, emissoras de rádio e TV ou qualquer lugar onde a vida pública exigisse a defesa da vida e do livre arbítrio.

Em sua jornada, Darcy permaneceu inabalável em suas convicções mais profundas, liderando abaixo-assinados em prol da simples preservação de uma árvore no bairro ou contribuindo para o fim de todo tipo de discriminação e preconceito, defendendo a inclusão social de todos.

Sua partida, atribuída a problemas respiratórios, deixou profundo vazio no meio artístico e intelectual, privando o Brasil e o mundo de um artista ímpar e de um ser humano de personalidade íntegra, inesquecível.

Em um gesto significativo que ressoa além de sua vida, Darcy Penteado fez uma doação em testamento para o município de São Roque (SP). Seu desejo era claro: impulsionar a criação de um movimento artístico em sua terra natal, promovendo a expressão cultural e criativa que tanto estimava.

No testamento, listou cada móvel, quadro e objeto que enchia sua casa na Serra da Cantareira, dentre os quais os que deveriam ser incorporados ao acervo para a criação de uma Fundação Cultural.

Conforme sua vontade, parte da obra foi entregue e criada a Fundação Enrico Dell’Acqua; ocorreram algumas exposições com as obras doadas, porém o espaço museológico não foi concretizado. Atualmente, a reserva encontra-se sem acesso público e aguarda uma ação urgente por parte das autoridades sobre adequação do local para maior e melhor divulgação de sua obra.

Arlequim, 1987. Serigrafia colorida. Acervo Darcy Penteado, Fundação Enrico Dell'Acqua - São Roque (SP).


[1] Jornal da Tarde. 26 jan. 1984, p. 14. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1WWf8bgZmaR29bh6Rd1QzJSQSrdQWmy9M/view. Acesso em: 10 dez. 2023.

[2] SIMÕES, Júlio Assis (O protesto contra o delegado Richetti..., 2018, p. 39).

[3] Estado de S. Paulo, 16 ago. 1983. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1b93qQ2OLCRrz1ixiWqCIGleYCIZzG-jt. Acesso em: 10 dez. 2023.

[4] Jornal do Brasil, 28 mar. 1984, p. 18. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&pesq=%22homossexuais%20darcy%20penteado%22&pasta=ano%20198&hf=memoria.bn.br&pagfis=116984. Acesso em: 22 nov. 2023.

[5] Jornal A Tribuna, 3 fev. 1980, p. 4. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=153931_03&pesq=%22darcy%20penteado%22&pasta=ano%20198&hf=memoria.bn.br&pagfis=44933. Acesso em: 16 nov. 2023.

[6] Estudo da marca. Disponível em: https://docs.google.com/document/d/11pxrEbqavOyNdwQCUs8RPPdN6h7zQqTP/edit. Acesso em: 10 dez. 2023.

[7] Correio Braziliense, 19 ago. 1981, p. 14. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=028274_03&pesq=%22NIVALDO%20E%20JERONIMO%22&pasta=ano%20198&hf=memoria.bn.br&pagfis=21303. Acesso em 16 nov. 2023.

[8] A Tribuna, 18 ago. 1981, p. 16. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=153931_03&pesq=%22darcy%20penteado%22&pasta=ano%20198&hf=memoria.bn.br&pagfis=128981. Acesso em: 26 nov. 2023.

[9] Cidade de Santos, 17 maio 1983, p. 17. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=896179&pesq=%22menino%20insone%22&pasta=ano%20198&hf=memoria.bn.br&pagfis=87445. Acesso em: 22 nov. 2023.

[10] A Tribuna, 14 mar. 1985, p. 26. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=153931_03&pesq=%22darcy%20penteado%22&pasta=ano%20198&hf=memoria.bn.br&pagfis=59712. Acesso em: 26 nov. 2023.

[11] A Tribuna, 19 mar. 1986, p. 18. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=153931_03&Pesq=%22darcy%20penteado%22&pagfis=72861. Acesso em: 26 nov. 2023.

[12] A Tribuna, 19 mar. 1986, p. 18. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=153931_03&Pesq=%22darcy%20penteado%22&pagfis=72861. Acesso em: 26 nov. 2023.

[13] Jornal Estado de S. Paulo, 4 nov. 1986. Capa Caderno 2. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1b93qQ2OLCRrz1ixiWqCIGleYCIZzG-jt. Acesso em: 10 dez. 2023.

[14] Folha da Tarde, 4 nov. 1986, p. 19. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1b93qQ2OLCRrz1ixiWqCIGleYCIZzG-jt. Acesso em: 10 dez. 2023.

[15] Jornal O Estado de S. Paulo, 16 abr. 1987. Caderno 2. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1b93qQ2OLCRrz1ixiWqCIGleYCIZzG-jt. Acesso em: 10 dez. 2023.

[16] Jornal O Estado de S. Paulo, 4 dez. 1987. Caderno 2. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1b93qQ2OLCRrz1ixiWqCIGleYCIZzG-jt. Acesso em: 10 dez. 2023.

Referências bibliográficas

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Sobre o projeto


Ficha técnica

Idealização, produção e curadoria: Jaqueline Ferreira

Pesquisa: Alexandra Cavassana e Jaqueline Ferreira

Produção de texto: Alice Prado

Edição e revisão de texto: Gislaine Maria da Silva

Historiadoras: Alice Prado e Alessandra Matheus

Design e website: Thiago José Cóser

Fotos: Thiago José Cóser, Roland Moser e Alexandra Cavassana

Tradução inglês: Rafaela de Souza

Montagem Vinicius Tanzi

Vídeo Thiago Roma


Apoio técnico

Fundação Bienal de São Paulo, Arquivo histórico Wanda Svevo

Biblioteca Lasar Segall - Paulo Pina

Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP)

Magali Gomes Nogueira


Agradecimentos

Tom Veiga, Paulo Pina, Franco Reinaudo, Paulo Penteado, Biblioteca Municipal Arthur Riedel, Divisão de Cultura da Estância Turística de São Roque, Marcos Escobar, Maloca Centro Cultural, Nilton Milanez, Rita Colaço, Clarissa Nogueira.


Este projeto é dedicado a Fernando Ramos (in memoriam) por incentivar sonhos.

Lei Municipal n.º 4084 de 14 de Outubro de 2013, que dispõe sobre a Lei de Incentivo à Cultura e a Criação do Fundo de Cultura Municipal - Projeto Aprovado n.º 007/2022


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